domingo, 6 de junho de 2010

“2001” é um filme para se ver com os ouvidos

A afirmação é temerária, mas vá lá: a trilha sonora de 2001-Uma Odisséia no Espaço é a mais apropriada da história do cinema. Poucas vezes imagem e música foram tão integralmente complementares quanto no filme de Stanley Kubrick.

Impossível não escutar O Danúbio Azul quando se recorda do balé de naves espaciais no éter, ou não se deixar envolver pelo tenebroso Réquiem de Ligeti à lembrança do enigmático monólito negro.

2001 começa com um excerto de Atmosphères, peça composta pelo húngaro György Ligeti (n. 1923), executada com a tela totalmente escura, transformando os espectadores em audiência de um concerto. Ligeti resume seu trabalho como sendo “um tipo de música em que não há ‘eventos’, mas somente ‘estados’, sem contornos ou formas, um espaço musical inabitado, imaginário”. Assim são as três peças de Ligeti na trilha, Atmosphères, Lux Aeterna (obra de 1966 criada para 16 vozes a capela) e Réquiem para Soprano, Mezzo-Soprano. Dois Coros Mixados e Orquestra (1965): uma estranha música feita de superfícies estáticas que se modificam imperceptivelmente, fluindo de modo contínuo, como se não tivesse começo nem fim - algo muito parecido com a visão metafísica do universo de 2001. Os dois saltos evolutivos apresentados no filme - de homem-macaco para homem do espaço e a transmutação do astronauta Dave Bowman em feto sideral - são pontuados pelo trecho do alvorecer do poema sinfônico Assim Falou Zaratustra, composto por Richard Strauss (1864-1949). A valsa O Danúbio Azul, de Johann Strauss (1825 - 1899), representa o momento mais “leve” de 2001, quando o diretor convida a platéia a deleitar-se com a graça dos movimentos orbitais de engenhos espaciais. Já o soturno Adagio da suíte de balé Gayane, escrita pelo soviético Aram Khachaturian (1903 - 1978), acompanha as cenas do interior da Discovery num complemento perfeito das imagens assépticas.

Curiosamente, Stanley Kubrick encomendou a Alex North uma trilha original. O compositor escreveu a partitura, mas o cineasta preferiu utilizar material sonoro já criado. (Roger Lerina)

Do livro “2001: uma odisséia no espaço” de Amir LABAKI. São Paulo, Publifolha, 2000:





















UMA HISTÓRIA, DUAS LEITURAS

Clarke e Kubrick não demoraram em assinalar, eles próprios, as diferenças marcantes entre as duas versões de 2001, em filme e em romance. “É um tipo totalmente diferente de experiência”, reconheceu o cineasta. “O romance, por exemplo, tenta explicar as coisas muito mais explicitamente do que o filme, o que é inevitável num meio verbal. [...] Acho as divergências entre as duas obras interessantes.”

Kubrick assumiu que “um monte de coisas foi adicionado durante a filmagem”. Comentando especificamente o tratamento distinto reservado ao monolito, concordou que o livro segue muito mais fielmente o enredo do tratamento original. “Decidi que representar o monolito de uma maneira tão explícita provocaria o risco de faze-lo parecer uma televisão educativa avançada. Você pode fazê-lo impunemente no papel, mas senti que poderíamos criar um efeito muito mais poderoso e mágico representando-o como no filme.

Por sua vez, Clarke destacou o tratamento diferente dado à rebelião de HAL.”O romance explica por que HAL agiu como agiu e o filme, claro, nunca deu qualquer explicação para o comportamento dele [...]. É perfeitamente compreensível, e isso torna HAL um personagem muito simpático, pois ele foi enganado pelo controle da missão. Se você analisa a filosofia por trás do romance, de certa forma é mais pró-máquina do que pró-homem.’’

Em suas declarações, Clarke sempre defendeu uma leitura mais definida de 2001, mesmo na versão cinematográfica. “Esse filme é sobre as duas mais importantes realidades do futuro: o desenvolvimento de máquinas inteligentes e o contato com inteligências alienígenas superiores - que, claro, poderão ser elas mesmas máquinas. Os comentários de Kubrick sempre foram mais econômicos e elípticos, aqui esclarecendo dúvidas de enredo, sobretudo na conclusão, acolá frisando a aplicação em 2001 de “uma intrigante definição científica de Deus”.

O cineasta seguidas vezes definiu 2001 como “uma experiência não-verbal [...] que fosse além de categorizações verbalizadas e penetrasse diretamente o subconsciente com um conteúdo emocional e filosófico”.

Ao contrário de Clarke, Kubrick revela uma sensibilidade romântica frente à saga espacial. No livro 2001, a inteligência extra-humana (a artificial da máquina, a superior do alien) sempre se impõe à humana. A Ciência vence a Natureza. Os símios tornam-se homens apenas depois da explicação por meio do monolito tornado cinema (ou TV). HAL, o computador perfeito, a razão pura, falha devido a um equívoco humano em sua programação. Ao fim, mais uma vez é o monolito que conduz o homem a um novo salto evolutivo.

O filme 2001 torna tudo mais complexo.A inteligência extra-humana continua a assumir diversas formas, anteriores e posteriores à humana. Contudo, a Natureza ainda se impõe à Ciência. O monolito acelera mas não determina a evolução do macaco ao homem. HAL rebela-se por impulso próprio, como o monstro do dr. Frankenstein, que dessa vez sabe recuperar o domínio sobre sua criação. Na conclusão, eis o monolito de volta, artefato alienígena, por certo, mas também símbolo de outra radical evolução humana - positiva ou negativa, é uma questão em aberto.


TRÊS CHAVES

À primeira vista, parece hoje curioso que 2001 tenha conseguido manter, por tanto tempo, tamanha aura mítica. Excetuadas as aparições dos monolitos e a última seqüência a partir do Portal Estelar, o filme não exige maiores esforços interpretativos. Sua narrativa e essencialmente linear, apresentando uma única grande elipse temporal, dos macacos à viagem de Lloyd no Orion. Não existem insercões narrativas com saltos para trás ou para a frente, nem sequer tramas paralelas. O eixo dramático é único, claro, constante.

As três chaves de leitura mais comuns, e complementares, remetem à Odisséia de Homero (c. 800 a.C.), à teoria mitológica de Joseph Campbell (1904-87) e à filosofia da evolução de Friedrich Nietzsche (1844-1900).

Homero

O próprio título assume e destaca o paralelo com o poema épico grego. Ainda durante as filmagens, Kubrick adiantava a comparação em depoimento a Jeremy Bernstein, da revista New Yorker: “Nos ocorreu que para os gregos as vastas extensões do mar devem ter sido tão misteriosas e remotas quanto o espaço para nossa geração, e que as longínquas ilhas visitadas pelos maravilhosos personagens de Homero não eram menos remotas para eles do que são para nós os planetas onde nossos astronautas irão logo pousar.”

Iniciada a saga de Bowman/Ulisses, ei-lo enfrentando um ciclope cibernético sob a forma de HAL (seu olho eletrônico vermelho é das imagens que mais se fixam na memória) e atirando-se ao espaço para seguir o chamado de sereias extraterrestres. Como seu predecessor grego, Bowman fecha o círculo voltando para casa, ainda que sua transformação acabe sendo mais radical do que a sofrida por Ulisses.

Joseph Campbell

2001 reencena a Odisséia a partir de uma releitura inspirada pelo antropólogo Joseph Campbell. Em seus diários, Clarke lembra que Kubrick pediu-lhe para ler O Herói das Mil Faces. Não é difícil pensar na saga de Bowman ao depararmos com o parágrafo abaixo de Campbell: “Não precisamos correr sozinhos os riscos da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo”. Discutindo o episódio final, o próprio Kubrick destaca que Bowman “volta à Terra, como fazem os heróis em todas as mitologias”, respeitando a estrutura tradicionalmente circular.

Nietzsche

Mas, assim como 2001 não se esgota na saga espacial, as possibilidades de interpretação vão além de Homero e Campbell. Trabalhando com o arco formado entre a aurora do homem e o “depois do infinito”, é a evolução humana o tema essencial de Kubrick e Clarke. Logo a primeira cena do filme entrega a chave que faltava. Sol e Terra dançam no espaço ao ritmo da introdução ao Assim Falou Zaratustra de Strauss. A tradução musical de um dos textos fundamentais da filosofia de Nietzsche anuncia, assim, essa quase versão fílmica.

Estruturado em aforismos e parábolas, Assim Falou Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para Ninguém (1883— 5) apresenta inúmeras passagens com possíveis correspondências em 2001. E o grande meio-dia será quando o homem se achar na metade de sua trajetória entre o animal e o super-homem e festejar seu caminho para a noite como a sua mais alta esperança” poderia passar por sinopse ou servir de epígrafe do filme de Kubrick e Clarke. Da água disputada à morte que aperfeiçoa, dispersas pelo texto de Nietzsche acumulam-se passagens com possível paralelo no filme. Marco maior da dívida, a evolução do homem no filme (e no livro) acompanha a teoria da evolução de Nietzsche. Tanto 2001 como Zaratustra dividem a história da humanidade em três grandes fases: a do homem-macaco, a do homem propriamente dito e a do super-homem (ou além-do-homem, como prefere Rubens Rodrigues Torres Filho, para traduzir o Ubermensch nietzscheano). Em várias entrevistas, o próprio Kubrick toma emprestada a terminologia de Nietzsche (sem citá-lo), batizando como “super-homem” a “criança-estrela” da conclusão do filme.

Se Campbell nos ajuda a entender a dimensão mitológica do épico espacial de Kubrick, o trecho abaixo de Nietzsche sintetiza o essencial dessa dramatização no filme da epopéia humana:

“Que é o macaco para o homem? Um motivo de riso ou de dolorosa vergonha. E justamente isso é o que o homem deve ser para o super-homem: um motivo de riso ou de dolorosa vergonha.[...] O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem - uma corda sobre o abismo. E o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar. O que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso.”

A influência nietzscheana se faz sentir em dois outros pontos de 2001. Os seres extraterrestres que visitam nosso sistema solar, deixando o monolito como um misto de símbolo e radar, superaram a materialidade, vivendo como energia ou espírito puro. O ET de Kuhrick e Clarke dá assim forma dramática à intenção nietzscheana de, nas palavras de Giacoia, “implodir o dualismo metafísico que separa corpo e alma, matéria e espírito”.

O filme partilha ainda com Zaratustra a crítica ao homem massificado e despersonalizado, aquele que sintomaticamente Nietzsche denomina de “o último homem” e que Kubrick/Clarke lança solitariamente no espaço depois do embate com HAL.

Há algo de frio e mecânico que torna intercambiáveis todos os personagens de 2001. A ausência de grandes estrelas no elenco confere uma rara dimensão de neutralidade na relação entre o espectador e os intérpretes do filme. Não foi à toa que um computador se tornou o personagem mais marcante de todo o filme. Seria fácil ocupar o restante deste livro apenas explorando essa vereda interpretativa.

A celebração de Nietzsche por meio de Strauss parece reafirmar-se quando o filme termina com a “criança-estrela” embalada pelos mesmos acordes ascendentes de Zaratustra. Mas não é assim tão simples. Nesse mesmo plano, Kubrick põe em xeque a interpretação ortodoxamente nietzscheana de 2001. Há algo vago, inconcluso, incerto, naquele embrião no espaço. “O brevíssimo olhar final do feto para nós não dá tempo de definir-se”, descreveu o crítico italiano Enrico Ghezzi. para concluir de forma certeira: “resta puro enigma”. Esse plano final mantém intacto, há mais de 30 anos, muito do mistério de 2001.

A ambigüidade essencial ao filme transcende essa dimensão meramente narrativa. 2001 devolve ao cinema um apelo sensorial mais próprio da produção da era muda. Menos de um terço do filme apresenta diálogos. O resto não é silêncio. Kubrick faz suas imagens interagirem com uma riquíssima trilha de ruídos e uma precisa escolha do repertório clássico. Cada seqüência maravilha por si, para além do sentido imediato que acrescenta à progressão do enredo.

“Para complicar [Marshall] McLuhan”, disse o cineasta, “a mensagem é o meio. Quis que o filme fosse uma experiência intensamente subjetiva que alcançasse o espectador em níveis muito íntimos de consciência, como a música faz.” Com 2001, Kubrick recupera o chamado “cinema de atrações”, típico da aurora do filme” - mais precisamente, do pioneiro Georges Méliès, não por coincidência o primeiro mago do cinema de ficção científica.

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